Aquela noite do Castelo, tão simples, tão monótona, fora uma revelação! Era bem certo que a lágrima existia, que irrompiam soluços de peitos oprimidos, que para alguém os dias não tinham cor nem a noite tinha estrelas! Ela, criada entre beijos, no aroma dos seus jardins, com as vontades satisfeitas, o leito fofo, a mesa delicada, sentira sempre no coração um desejo sem nome, um desejo ou uma saudade absurda, a saudade do céu, como dizia o dr. Gervásio, e que não era mais que a doida aspiração da artista incipiente, que germinava no seu peito fraco. E aquela mesma mágoa parecia-lhe agora doce e embaladora, comparando-se à outra, a Sancha, da sua idade, negra, feia, suja, levada a pontapés, dormindo sem lençóis em uma esteira, comendo em pé, apressada, os restos parcos e frios de duas velhas, vestida de algodões rotos, curvada para um trabalho sem descanso nem paga! Por quê? Que direito teriam uns a todas as primícias e regalos da vida, se havia outros que nem por uma nesga viam a felicidade?
ALMEIDA, J. L. A falência . Disponível em: www.dominiopublico.gov.br. Acesso em: 28 dez. 2023. Nesse fragmento do romance de Júlia Lopes de Almeida, escrito no cenário brasileiro pós-abolição, a narradora exprime um olhar crítico sobre a
A) desvalorização da arte produzida por mulheres. B) mudança das condições de moradia do povo negro. C) ruptura do projeto político de emancipação feminina. D) exploração da força de trabalho da população negra. E) disputa de poder entre brancos e negros no século XIX.